São muitas as críticas e questionamentos à PEC 45/2019 recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados, que institui a reforma tributária. A despeito disso, o simples fato de o Executivo, o Congresso Nacional e especialmente a própria sociedade terem se mobilizado e acordado a respeito da necessidade de reformar, simplificar e aprimorar nosso modelo tributário já é algo extraordinário a ser comemorado.

Foram décadas de muitos debates e discussões longe de qualquer consenso ou solução minimamente tangenciável, e pela primeira vez agora estamos diante de uma reforma que se mostra cada dia mais concreta.  

No contexto dessa Reforma, o primeiro foco é a tributação sobre o consumo com o objetivo de instituir o famoso Imposto de Valor Agregado (IVA) no Brasil, por meio da criação de dois tributos similares, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que reunirá o PIS, a Cofins e o IPI, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que unificará o ICMS e o ISS. Em um segundo momento, o plano é tratar da tributação sobre a renda. E como fica a tributação sobre a folha com todas essas mudanças? O que vem pela frente?  

Paralelamente à tramitação da reforma, tem se discutido no âmbito do PL 334/2023 a prorrogação do Regime da Desoneração da Folha (CPRB), que termina, a princípio, no próximo 31 de dezembro. Mas, nos moldes que temos hoje, a CPRB está bem distante de ser considerada um instrumento ou mecanismo que altere significativamente a tributação da folha. Vejamos.  

Na realidade, a CPRB implica, para as empresas autorizadas a optar pelo regime – em tese aquelas intensivas em mão de obra – a alternativa de não tributar a folha e sim tributar a receita bruta, mesma base de cálculo hoje do PIS e da Cofins. A justificativa por trás da CPRB é simples: se a tributação sobre a folha é muito onerosa, como se verifica hoje[1], o incentivo à contratação formal de empregados se reduz, ensejando modelos alternativos de trabalho, muitos beirando ou inseridos na informalidade. Desonerar a folha, portanto, deveria baratear o custo da mão de obra, e automaticamente gerar mais empregos[2], e, por consequência, impactar o poder aquisitivo dos empregados, aumentando o consumo e fomentando a economia como um todo.  

Isso depende, naturalmente, da premissa de que as empresas vão de fato utilizar os recursos financeiros excedentes – ou seja, a economia trazida pela desoneração – para contratar novos funcionários, pagar e eventualmente aumentar seus salários. Mas isso se mostra sempre verdadeiro? As empresas desoneradas podem, ao invés disso, com a economia decorrente da redução do custo de mão de obra, repassar essa margem aos acionistas ou reduzir o preço de seus produtos. O que garante que o Regime de Desoneração de fato cumpre seu propósito e que a renúncia fiscal, muito significativa, vale mesmo a pena?  

A nosso ver, reformar a tributação sobre a folha não se limita a prorrogar ou modificar o atual Regime da Desoneração. Deveria ir muito além disso. A primeira reflexão necessária diz respeito à finalidade da própria tributação previdenciária. Afinal, para que as empresas pagam contribuições previdenciárias?  

No modelo da nossa CF/1988, o orçamento da Seguridade Social atende a Previdência Social, o Sistema Único de Saúde e Assistência Social. A Seguridade Social é financiada, diretamente, pelas contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico (Cide) e de interesse de categorias profissionais ou econômicas, nos termos do artigo 149, e também pelas contribuições do artigo 195 que incidem sobre a folha, a receita, o faturamento e o lucro, ou seja, pelas contribuições previdenciárias, pelo PIS, pela Cofins e pela CSLL.   

As contribuições previdenciárias que incidem sobre a folha, portanto, são uma das fontes relevantes de financiamento da Seguridade Social[3], custeando a concessão de diversos benefícios previdenciários como aposentadoria, aposentadoria especial, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, pensão por morte, salário-maternidade etc.  

Portanto, as empresas pagam contribuições previdenciárias sobre a folha especialmente para custear os benefícios pagos aos trabalhadores brasileiros. Logo, qualquer reforma sobre a folha deve necessariamente considerar os impactos em termos de arrecadação e fontes de financiamento da Seguridade Social.   

Apesar de a PEC em discussão não tratar propriamente da tributação previdenciária, com a eliminação futura do PIS, da Cofins e da CSLL, será que a Seguridade Social ficará prejudicada no que tange ao seu financiamento? A receita da CBS aplicada na Seguridade Social, nos termos da redação proposta pelo artigo 195, V, e 239 da CF/1988, será suficiente? Esses pontos não foram ainda devidamente abordados e discutidos no âmbito da Reforma, embora sejam de extrema importância.   

Tratando-se de efetiva reforma da tributação sobre a folha, que ainda não foi proposta pela PEC em tramitação, como dito, nos parece que essa reforma deveria considerar os problemas que já enfrentamos e como podemos solucioná-los. A tributação sobre a folha tem sido alvo de um contencioso expressivo – somente a discussão sobre a isenção concedida a verbas indenizatórias não previstas expressamente na legislação ordinária implica milhares de processos que movimentam o Poder Judiciário. Repensar e simplificar a base tributável se mostra imprescindível, assim como se pretende eliminar as discussões hoje travadas sobre a base do PIS e da Cofins e a contraposição entre ISS e ICMS, instituindo a CBS e o IBS sobre base ampla incluindo todos os bens, materiais e imateriais, diretos e serviços. Por que não pensar em algo similar para as contribuições previdenciárias?  

Nesse contexto, imaginamos que no Senado Federal a PEC 45 deve ser alterada para acolher em parte a proposta da PEC 46, de iniciativa daquela Casa Legislativa[4], que propõe “no caso específico da contribuição prevista na alínea ‘a’ do inciso I [do artigo 195, da CF], alíquotas regressivas em razão da utilização intensiva de mão de obra e da massa salarial”. Essa ideia de redução de alíquotas e simplificação da base de cálculo da contribuição previdenciária foi objeto de estudo realizado pela Associação Brasileira da Advocacia Tributária (Abat), que deu ensejo à apresentação de propostas de emendas nas PEC 45 e 110, não acolhidas nas discussões da reforma tributária ocorrida em 2019.  

Deveríamos ainda refletir em como adequar a tributação previdenciária em relação a novos modelos de trabalho que exigem mais flexibilidade e liberdade, especialmente aqueles que surgiram após a pandemia, com o aumento do trabalho remoto, bem como aqueles novos tipos de trabalhos que surgirão com a expansão da Inteligência Artificial (IA), substituindo tarefas tradicionais e criando atividades distintas. Já temos hoje uma mudança importante nas relações de trabalho com os milhares de aplicativos e trabalhadores autônomos, sem qualquer vínculo de emprego. Como fica a situação dessas pessoas? Como pensar em formas de adequar o custeio previdenciário em face de uma nova economia cada dia mais disruptiva em termos de inovação e tecnologia?  

E mais, continuaremos seguindo impondo um modelo estatal da imposição da contribuição do seguro acidente do trabalho e riscos ambientais do trabalho (SAT/RAT) para custear os benefícios previdenciários? Ou faria sentido voltarmos ao modelo anterior, mas aperfeiçoado, onde o custeio dos benefícios previdenciários seria privatizado? E quanto às contribuições destinadas a outras entidades (Sistema S, FNDE e Incra, DPC e Fundo Aeroviário), cuja discussão judicial sobre a limitação de sua base de cálculo representa hoje a maior discussão tributária do país? Faz sentido legislar para modificar suas alíquotas, acabar com a discussão sobre limitação de teto de sua base de cálculo etc.? É uma discussão importante e irremediável.  

Essas são apenas algumas das questões que merecem ser debatidas e exploradas com maior profundidade quando se fala em reforma da tributação sobre a folha. Reduzir a alíquota da contribuição patronal ou aumentar o escopo do modelo de desoneração hoje existente claramente são alternativas importantes, mas que não implicam uma reforma estrutural e verdadeira. Torna-se necessário pensar além do óbvio e, especialmente, no futuro que se apresenta sempre mais complexo.

[1] “As contribuições previdenciárias da empresa e do segurado sobre remunerações podem chegar a 48,5% , ao passo que a média dos países da OCDE é de 22,9%”, artigo “Contribuições previdenciárias: Entenda como são calculadas e cobradas”, publicado no Jota em 13.5.2021 por BRENO VASCONCELOS e THAIS SHINGAI.  

[2] Vide Exposição de Motivos da MP 540/2011:  

“18. Além das medidas expostas, propõe-se substituir pela receita bruta a remuneração paga aos segurados empregados, avulsos e contribuintes individuais contratados, como base de cálculo da contribuição previdenciária devida pelas empresas que atuem nos setores contemplados. 

Nos últimos anos, em virtude da busca pela redução do custo da mão de obra, as empresas passaram a substituir os seus funcionários empregados pela prestação de serviços realizada por empresas subcontratadas ou terceirizadas. Muitas vezes, as empresas subcontratadas são compostas por uma única pessoa, evidenciando que se trata apenas de uma máscara para afastar a relação de trabalho.

Em virtude dessa nova relação contratual, os trabalhadores ficam sem os direitos sociais do trabalho (férias, 13º salário,seguro desemprego, hora extra, etc.), pois se trata de uma relação jurídica entre iguais (empresa-empresa) e não entre trabalhador e empresa. Essa prática deixa os trabalhadores sem qualquer proteção social e permite que as empresas reduzam os gastos com encargos sociais.

Apesar da melhora do cenário econômico após a crise de 2008/2009, as empresas que prestam serviços de tecnologia da informação – TI e tecnologia da informação e comunicação – TIC, bem como as indústrias moveleiras, de confecções e de artefatos de couro têm enfrentado maiores dificuldades em retomar seu nível de atividade. Nesse contexto, a medida proposta favorece a recuperação do setor, bem como incentiva a implantação e a modernização de empresas com redução dos custos de produção”.

[3] Representaram 49,72% da receita total da Seguridade Social em 2021, conforme estudo do Tribunal de Contas da União. Disponível em: https://sites.tcu.gov.br/contas-do-governo-2021/05-orcamento-publico.html#:~:text=Em%202021%2C%20a%20Uni%C3%A3o%20arrecadou,2%2C51%25%20PIB). 

[4] PEC 46 –Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/155612> Acessado em 20/07/2023.

PEDRO ACKEL – Sócio do WFaria Advogados e membro do Grupo de Estudos de Custeio da Previdência Social (GEC)

MARIANA MONTE ALEGRE DE PAIVA – Sócia do Pinheiro Neto Advogados e membro do Grupo de Estudos de Custeio da Previdência Social (GEC)